Eu não o odiava tanto â sussurrou Kotaro, olhando abatido para onde o corpo de Toya tinha ficado momentos antes. Ambos amaram Kyoko e ela, por sua vez, teve carinho por ambos... nunca escolhendo um em vez do outro quando eles estavam lutando... até hoje à noite. O destino só lhe havia dado poucas horas, pelo menos Toya não sabia disso.
Sua mão se fechou em um punho e ele apertou. Toya teria ficado louco, mas ele estaria vivo. â Preferiria enfrentar a raiva dele... não isso... não isso. â Sua voz vacilou.
Ambos tentaram protegê-la, mas agora Toya... os olhos azuis gelo de Kotaro nadaram com lágrimas não derramadas:
â Eu nunca o odiei.
â Ele sabe que não â disse Kamui, levando o Kotaro na direção do único lugar seguro que conhecia... o mago, a casa de Shinbe. Ele precisava contar para o amigo sobre o destino de Toya e de Kyoko. Shinbe de alguma forma sabia o que fazer, ele sempre sabia.
â Eu vou matar aquele bastardo do Hyakuhei! â rosnou Kotaro enquanto lutava contra a restrição de Kamui, sua natureza de licantropo indo à superfÃcie. â Ele a matou... ele matou Toya por causa dela. Quando eu o encontrar, ele desejará nunca ter nascido humano.
Como se o vento tivesse sido arrancado de si, o corpo de Kotaro estremeceu. Ele sabia que Toya era muito mais forte do que ele jamais reconhecera, mas sem Kyoko para proteger, Toya perdeu a vontade de lutar. Hyakuhei sabia disso antes da luta ter começado.
O sofrimento de Toya o fez ficar irritado, impaciente. â Se ele tivesse esperado mais alguns momentos, Kyou poderia tê-lo salvado. â A tristeza pendia em todas as sÃlabas enquanto Kotaro limpava as lágrimas com raiva, lágrimas que silenciosamente deixavam trilhas em seu rosto.
â Eu queria salvar os dois... Kyoko. â A dor em seu corpo enfraquecido era demais quando ele fechou os olhos azuis brilhantes e cedeu ao nada que acalmaria a dor por um curto perÃodo de tempo.
Kamui assentiu enquanto levantava o corpo mole de Kotaro e o carregava.
â Você já fez o suficiente. Descanse agora â sussurrou ele. â à minha vez de salvar as pessoas.
CapÃtulo 2
Perto da hora do amanhecer, Kamui pairava acima de uma sepultura não marcada. Os dois homens de cada lado dele eram tudo o que ele tinha. Ele observou Shinbe usar seus poderes telecinéticos para remover a terra do túmulo de Toya e ampliá-lo o suficiente para dois corpos.
Shinbe e Kotaro tinham a mesma expressão agora... tristeza e uma força teimosa. Kamui sabia que eles estavam tentando parecer fortes para ele, mas ele podia ver a melancolia que ambos escondiam.
Todos olharam para o túmulo... a realidade dolorosa de tudo aquilo sendo absorvida. As coisas não deveriam acabar assim... o lado bom não deveria perder... ou morrer. Shinbe os ajudou a tomar uma decisão sobre o que fazer. Buscando o corpo de Kyoko, eles o levaram para o túmulo onde Kyou colocou seu irmão e enterrou-os juntos.
Toya teria querido assim... era a única coisa que fazia sentido.
Kamui tinha sido incapaz de levar o corpo de Kyoko para o túmulo quando o encontraram. O sangue que a rodeava não era o que o incomodava. Era apenas muitÃssimo doloroso ver alguém tão gentil e puro, carregando tanta luz dentro de si, estar ali agora, deitada na escuridão, com os olhos abertos, mas vazios. Isso é que doÃa ver.
Percebendo o choque de Kamui e vendo suas mãos tremendo, Kotaro interveio e ergueu Kyoko amorosamente em seus braços, tentando ignorar a rigidez no corpo dela. Ele não conseguia sentir nada exceto raiva e tristeza naquele momento. Se ele se permitisse sentir o resto das emoções, o quanto ele a amava, seus joelhos se curvariam. A dor pesava muito sobre ele.
Ver o olhar no rosto de Kamui foi suficiente para ajudá-lo a controlar suas próprias emoções e a dormência que havia se estabelecido também ajudou. Kamui não era humano nem era criatura, o que quer que ele fosse, seu coração estava em destroços. Kotaro decidiu que seria sua missão cuidar dele de agora em diante, mesmo que o garoto provavelmente não precisasse disso.
Kamui limpou a trilha de lágrimas de seus olhos, tentando ser forte como Kotaro e Shinbe. Seu cabelo roxo indomado sacudiu ao vento enquanto ele olhava para a terra recém-revirada. Ele tirou seu próprio manto e gentilmente envolveu-os para aumentar o poder do feitiço que ele estava prestes a lançar.
Ao fechar os olhos brilhantes, ele cruzou os dedos enquanto as asas iluminadas brotavam de suas costas em um turbilhão de penas. Elas brilhavam com cores tão intensas que o olho humano desconhecia.
Shinbe e Kotaro, assustados, deram um passo para trás, de repente entendendo o que Kamui era. A palavra anjo pairava em seus lábios, mas ele parecia tão triste. Como um anjo com um coração partido... um anjo caÃdo.
Com dedos gentis, Kamui tirou uma pena de sua asa direita e segurou sua mão com a palma para cima. A expressão triste e serena em seu rosto não vacilou. Seus olhos brilharam com um vislumbre de esperança enquanto ele rapidamente deslizou a pena afiada em sua palma causando um corte raso.
O lÃquido carmesim se acumulou em sua palma e Kamui fechou lentamente o punho antes de se dirigir ao túmulo não marcado. As gotas sagradas do sangue de sua vida caÃram sobre a terra, fazendo o solo brilhar com um poder azul elétrico sobrenatural.
Chocados, Shinbe e Kotaro só podiam ficar de pé e assistir enquanto tudo acontecia. Eles não se atreveram a se mover por medo de perturbar o rito que Kamui estava realizando. Ambos compreenderam que estavam testemunhando algo incrÃvel e, sem dúvida, nunca mais veriam algo assim novamente.
O ar em torno de Kamui girou em um vórtice que o rodeava em uma luz azul fluorescente. Sua voz ecoante deixou seus lábios parecendo mais velhos e sábios do que um dia já foram. A voz ricocheteou pelos céus, um som assustador que viajava por quilômetros, fazendo com que tudo que a ouvia ficasse imóvel em reverência ao seu poder:
Mil anos serão necessários.
Desta vez, obedeceremos para o seu próprio bem.
Quando o sangue de um guardião derrama
à hora desta profecia se cumprir.
Só então duas almas irão reviver.
Trazendo-as para a luz,
Fadadas a combater a magia negra da noite.
Com essa promessa, nós imortais tomaremos as armas,
Protegendo contra o mal aqueles que renasceram.
Nas mãos da pedra e do mármore, ao nosso inimigo daremos
O único desejo que ele anseia... dentro da luz para viver.
à medida que o vórtice circundava Kamui, uma pluma incandescente de cada asa iluminada se soltou e voou para a frente dentro do ciclone, girando como duas pequenas adagas e pousando diretamente no túmulo. As penas brilhantes ficaram presas no solo suave por alguns breves momentos antes de se afundarem na terra para fundirem-se com as almas de seus amigos.
Os joelhos de Kamui se chocaram com o chão quando o feitiço se dispersou, enviando uma onda de choque em todas as direções.
â Até que nos encontremos novamente, Kyoko... Toya â murmurou Kamui ao sentir a solidão lhe cercar. â Talvez a próxima vida seja em um tempo melhor e muito mais iluminado.
Shinbe permaneceu em silêncio ao lado dele, sem querer nada além de derramar suas lágrimas, mas ele não podia se dar a este luxo. Hyakuhei ainda estava por lá e ele sabia que o vampiro de coração negro acabaria por vir atrás dele. O inimigo saberia o que tinham feito. Por enquanto, ele apagaria todos os traços que podia.