Mesmo depois de Tama, sua irmã mais nova, ter lhe contado muito do que sabia, ela apenas balançava a cabeça e abaixava os olhos. Apenas se lembrava de ter estado sozinha em outro mundo. Um mundo cheio de monstros.
O avô franziu os lábios enquanto refletia. Ele sabia que as coisas tinham se endireitado porque Kyoko dissera que se lembrava de algo sobre o Cristal do Coração Guardião voltando para dentro dela e que isso não ocorria mais. Depois de algumas semanas, ela já se dedicava inteiramente aos trabalhos escolares e estava tirando ótimas notas; então, tudo tinha valido a pena. O avô ouviu a porta da frente se abrindo e sorriu abertamente.
Beijando a carta como se fosse um amuleto sagrado de boa sorte, viu sua neta indo para a cozinha. Kyoko adoraria essas notícias.
*****
Três semanas depois...
Olhos amarelos demoníacos observavam a jovem do passado se aproximar da academia. Ele a encontrara e, de alguma maneira, faria o que era certo novamente. Sentiu sua aparência humana se desvanecer por um instante, quando seus olhos brilharam como ouro líquido na lembrança de tudo que tinha acontecido naquele dia fatídico no meio da batalha cruenta.
Os raios do sol da manhã entraram pela janela projetando uma estranha sombra de asas atrás dele. Ergueu as mãos com garras e estreitou os olhos observando suas garras recuarem para o interior de seu disfarce humano.
Voltando seu olhar de assombração para a sacerdotisa, ele acalmou internamente seus poderes. Era chegado o momento. Com a pureza de Kyoko, sentiu o despertar da maldade dentro de si. A batalha inacabada estava prestes a começar. Dessa vez, ele não cometeria o mesmo erro.
Kyoko olhou o imenso edifício. Teve a mesma impressão de estar olhando o grande castelo de algum passado desconhecido. Sorriu intimamente; não pôde evitá-lo. Ela ainda estava muito feliz depois que soube da bolsa de estudos e pelo fato de que podia mesmo morar ali.
Voltou-se para Tama. Ele fôra de grande ajuda tendo vindo em seu auxílio, carregando sua bagagem e ajudando-a a se instalar. Kyoko estava contente por ter falado com sua mãe e avô quando estava em casa e ter podido se despedir deles. Estava meio tonta com tanta liberdade e respirou fundo para saboreá-la.
Kyoko, você vai ficar aí o dia inteiro, ou vai em frente procurar o dormitório? Tama se queixou, apesar de também ter ficado impressionado com a vista. Ele olhou para cima, pasmado com o gigantesco arco que levava ao portão principal.
Kyoko olhou o mapa e apontou para o enorme edifício ligado ao lado direito da escola. Deve ser aquele edifício. Ela virou-se para Tama dando uma piscadela. Obrigada pela ajuda hoje de manhã.
Tama sorriu, um pouco embaraçado. Claro Kyoko, afinal, vou ficar um pouco livre de você e só isso já me compensa. Partiu agachado tentando escapar dela morrendo de rir.
Kyoko começou a correr atrás dele, mas parou no meio do caminho sentindo-se observada.
Enquanto a brisa afastava seu cabelo ruivo-castanho do rosto, ela olhava o edifício perguntando-se que olhos eram esses que a espreitavam, já que não via ninguém. Vinha percebendo coisas estranhas nos últimos anos, e sabia que, sem dúvida alguma, alguém a espionava de perto. Quase sentia que a tocavam.
Pensou ter percebido algum movimento na janela de cima, mas ao fixar o olhar, não viu nada. Kyoko soltou um suspiro e compreendeu que a sensação de estranheza tinha passado. Suavemente mordeu o lábio sentindo-se decepcionada em partir. Desistindo por fim, ela finalmente alcançou Tama e entraram juntos no prédio. Ambos ficaram paralisados quando olharam em volta.
Esse lugar é assombroso, murmurou Tama, olhando e acrescentado com voz séria. Cuidado com esse mapa, conhecendo-a bem, digo que você pode se perder aqui.
Kyoko fingiu que não ouviu enquanto seus olhos vagavam pelo interior do saguão principal. O salão onde estavam tinha uma altura de três andares e uma escadaria que subia em espiral para os outros pisos. Num dos lados havia uma enorme biblioteca; o outro lado parecia abrigar uma área de recreação e, bem no meio, existia um gigantesco candelabro pendendo lá do alto do teto abobadado.
´Realmente, detestaria vê-lo cair´, disse ela para si mesma.
Embaixo do candelabro, uma área de estar com móveis luxuosos. Os estudantes estavam já ativos e empenhados em seus afazeres, embora ainda fosse bem cedo da manhã. Ela quis chegar o mais cedo possível e agora eram 7h30; olhou o mapa novamente perguntando-se para onde deveria ir em seguida.
Suspirando, olhou por cima do ombro para Tama e apontou a escada em espiral em frente deles. Tinham quatro maletas entre eles, pois Kyoko estava mesmo de mudança e elas estavam pesadas.
Tama fez cara desanimada. Você deve estar brincando. Ele soltou a alça da maleta maior reconhecendo que os rodízios não serviriam para nada dessa vez. Só tenho 12 anos, sabia?
Ela ergueu os ombros determinada.
Kyoko se surpreendeu quando uma voz masculina atrás dela disse: A senhorita chama-se Kyoko Hogo?
Ela imediatamente virou-se e respondeu: Sim
Seus olhos se arregalaram quando encarou o belo jovem que perguntava. Tinha surpreendentes olhos azuis e uma longa cabeleira escura puxada para trás em rabo de cavalo. Enquanto olhava admirada, sentiu uma brisa estranha passar pelo seu rosto. As pontas de seu cabelo lhe fizeram cócegas na face enquanto a brisa soprava.
Ele estava lhe sorrindo de maneira atraente. Então, para sua surpresa, ele estalou os dedos e dois camaradas apareceram não se sabe de onde, pegaram a bagagem e subiram a escada com elas. Os olhos de Kyoko mostravam assombro, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o outro sujeito levou suas mãos ao lábio e beijou-as como se ela fosse uma princesa.
Meu nome é Kotaro. Não gostaria de ver alguém tão linda como você tendo que carregar algo tão pesado. Agora, siga-me para que eu lhe mostre seu dormitório. Kotaro começou a subir as escadas confiantemente, de mãos dadas com ela.
O calor repentino que percorreu seus dedos e subiu pelos braços, continuou se espalhando pelo corpo de Kotaro e despertando seu sangue de guardião. Esse era um segredo que pretendia guardar. Kotaro apertou a mão dela ligeiramente sabendo que ela era quem esperara tão pacientemente. Sentira no momento em que ela entrara na sala.
Kyoko ergueu a sobrancelha delicadamente e pensou consigo mesma: Deuses, salvem-me de homens corteses.Onde é que vim parar?
Virando-se, ela encolheu os ombros para Tama, que estava ali de boca aberta. Kyoko levantou a cabeça para o lado e ergueu uma sobrancelha. Tama, tenha cuidado, você vai acabar pegando uma mosca se ficar assim. Antes que ele pudesse se recompor, ela virou-se e seguiu a figura ágil do sujeito que ela só sabia chamar-se Kotaro.
Mentalmente, ela marcou um ponto a seu favor, no marcador secreto e imaginário que mantinha entre ela e Tama. Ela o ouviu bufar atrás dela enquanto subiam as escadas e soube que estava ganhando o jogo.
Cruzaram então com um sujeito que descia as escadas. Quando ele passou sem olhá-la ela sentiu um aperto no coração e parou de respirar. O silêncio se fez quando ele passou por ela quase que em câmera lenta. Então, tudo voltou ao normal enquanto seu coração bateu uma vez menos e depois se acelerou.
Uma sensação de desconforto percorreu sua pele, como se ela não estivesse notando algo, ou melhor, como se ela tivesse perdido alguma coisa e sentisse muitíssimo. Tentando espantar a reação estranha, nem mesmo se voltou para descobrir quem tinha passado por ela. No momento sentiu que era melhor não tomar conhecimento.
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