O divertimento estava ao culmine e Xam continuava a entrar e a sair nas flores.
Zàira procurou aproximar-se a ele, tinha esquecido de dizer-lhe para não exagerar, o fluido hilariante podia fazer-lhe perder o contacto com a realidade.
Não passou muito tempo que isto aconteceu, Xam tinha perdido o controlo e aproximava-se perigosamente à zona proibida.
Zàira pensou em ter que intervir antes que fosse bastante tarde, as pontas dos cristais na parede o tirariam a vida. Xam contudo movia-se à sua mesma velocidade pela qual teria sido impossível alcançá-lo. Assim tirou para fora dos seus bolsos as suas duas garrafinhas e as utilizou para acelerar. Alcançou o amigo, que ria não dando-se conta do perigo, um instante antes que se despenhasse nas paredes e o puxou com ela.
Levou-o novamente para a zona das flores e não o largou mais até ao final do voo, assim que acharam a justa corrente ascensional, pediu em restituição as suas garrafinhas e, segurando-o, levou-o de novo ao abrigo à margem do Canyon.
Deram-se conta de ter arriscado a vida mas não conseguiam parar de rir. Permaneceram deitados no chão agarrados, próximos um de lado ao outro e felizes esperaram o fim do efeito do fluido hilariante antes de regressar a casa.
Terceiro Capítulo
As rugas que se apresentavam eram os olhos e a boca do ser
No momento era Zàira a estar em perigo e a distância que os separava do cume da colina para Xam parecia eterna. Ali sobressaia uma abobada branca, parecia uma colmeia, tinha uns espelhos hexagonais que contornavam todo o edifício, reflectindo a luz do sol quase cegante.
Mais se aproximavam ao mosteiro, mais um sentimento de serenidade infundia-se nos seus corações.
Xam, esgotado pelo peso da companheira, continuou caminhando até que, chegados ao templo, viram-se diante de um arco aberto que levava ao seu interior.
Assim que estiveram dentro, o corpo de Zàira ergueu-se flutuando entre os braços de Xam, que não se opôs, sentia que não havia ameaça naquilo que estava a acontecer.
Foi transportada para um largo corredor e desapareceu lentamente da sua vista.
Centenas de subtis pilares laterais sustinham uma imensa abobada transparente que se apresentava no universo, como se o mosteiro se encontrasse no espaço, Ulica e Xam viram um estranho ser com as formas um tanto insólitas no fundo da nave e aproximaram-se.
O corpo, cinzento - violeta e aproximadamente cilíndrico, era constituído pela cabeça e por quatro secções que lavavam duas patas cada uma, aquilo que parecia um nariz em forma de uma pequena tromba era preponderante no rosto mas parecia que algo ou alguém o tivesse puxado com força para dentro, as rugas que se demonstravam eram olhos e boca do ser. O seu corpo não era mais grande que um saco cheio de farinha.
- Sinto em vocês uma energia positiva, desculpem se vos arrastei até aqui, mas o gesto da vossa companheira afectou-me.
- O gesto da nossa companheira não nos maravilhou, conhecemos a sua generosidade.
Não devíamos arrastar aquelas criaturas inofensivas num embate, perdemos muito tempo vagueando pela selva, consentindo a Mastigo para intuir onde nos tivéssemos dirigido e levando os seus guardas para aquele lugar doce e sereno, erro imperdoável – esclareceu Ulica.
- Teria sido impossível para os Tetramir chegar até aqui sem arrastar aquelas pobres criaturas para um embate.
- Como sabes quem somos?
Tentou perguntar Ulica, mas Xam a interrompeu bruscamente enquanto instintivamente lhe agarrava o antebraço:
- Onde foi parar Zàira? – Perguntou ao frade, ainda que sentia que nada de mal pudesse acontecer à sua amiga naquele lugar.
- Não te preocupes, está seguro. Está a recuperar, brevemente estará aqui entre nós.
A resposta pareceu-lhe vaga, mas continuava a sentir aquela sensação de bem-estar e serenidade.
- Como sabes quem somos? – Repetiu Ulica que queria perceber quem estivesse à frente deles.
- Sou Rimei - proferiu o ser sem fazer caso à questão – estou aqui para a meditação. As vossas almas e as vossas acções, mesmo a beleza da Eumenide da qual me escapa o nome – parecia que estivesse a rir disfarçadamente satisfeito pela malandrice – têm, pois trezentos anos, atraído a minha atenção.
- Ulica – o seu rosto com traços doces não se descompôs pelo elogio.
Grácil e fina, sabia que era muito linda e não escondia, a população da qual fazia parte não estava inclinada aos galanteios, nem a ocultar as próprias opiniões e emoções. Reproduziam-se, como as borboletas, por um casulo de cor que teria espelhado aquela criatura que estava para nascer. As Eumenides eram de tantas cores, todas em tonalidade a pastel.
Ulica fazia parte das novas gerações, criadas geneticamente. No planeta, um estranho acontecimento ocorrido durante a última grande guerra, ainda em estudo pelos geólogos mais experimentados, tinham feito deslocar ligeiramente o eixo, criando alguns desequilíbrios ambientais e magnéticos que tinham eliminado a população masculina.
Para evitar e extinção da sua espécie, as Eumenides tinham recorrido à multiplicação dos genes masculinos in vitro (processos biológicos laboratoriais) à utilizar para a fecundação artificial.
Vinham geneticamente criados apenas embriões de sexo feminino, para evitar que nascessem outros machos que teriam ido ao encontro da morte segura. Jamais dispostas em ceder a uma derrota, procuravam novamente no seu ADN tal gene que tinha a eles permitido de sobreviver para implantá-lo no ADN masculino, de forma a torná-lo invulnerável às novas características ambientais de Eumenide.
- Não me disseste ainda como fazes para saber quem somos – insistiu Ulica com o frade.
- Porque eu vejo muitas coisas. Esperava já há muito tempo que viessem pôr-me as vossas questões.
- Que questões? – Perguntou confuso Xam acariciando a densa barba preta e encaracolada.
- Aquelas relacionadas com o Kirvir – antecipou-o Ulica – antes, do que estas a falar? – Perguntou pois dirigindo-se ao frade – O que consegues ver?
- Consigo ver tudo aquilo que acontece nos planetas, mas as informações às vezes ficam em mim durante um tempinho.
- Quanto tempo?
- Depende das informações, às vezes para sempre, outras não mais que um dia ou algumas horas.
- O que podes nos dizer sobre Kirvir? – Perguntou Xam.
- Kirvir é tudo: nos circunda, nos une e nos divide, se estimulada transforma-se, parece que se possa governar na verdade é efémero, pode ser sabia ou terrivelmente perigosa.
- Não estás a dizer-nos nenhuma novidade – comentou Ulica.
- Não há nada de novo, tudo já está à nossa volta – respondeu o frade – basta deixar-se transportar por ela para a direcção certa.
- Se vês tudo, já sabes qual é o nosso escopo, ajude-nos a controlá-la, isto restabeleceria o equilíbrio – declarou Xam.
- Lógico que nos quer ajudar – fez o ponto Ulica – ou não nos teria levado até aqui, o problema é como.
- Não tenha pressa minha querida, esperei muito tempo para este momento, são trezentos anos que não converso com ninguém, não me tira o privilégio de conversar. O tempo é uma dimensão dos vivos não da Kirvir, no fundo a escolha de trazer-vos até aqui foi muito meditada.
- Mas nós vivemos o nosso tempo e temos a responsabilidade de outros como nós, a guerra é iminente – afirmou Xam.
- Ficarão aqui em cima até que será necessário, se quiserem respostas às vossas questões. Não depende de mim, a decisão virá da Kirvir o tempo necessário para mostrar-vos o caminho por percorrer.
Aos Tetramir tinha parecido que tivessem passado poucos minutos, todavia viram surgir Zàira através de um largo corredor de luz.